Suspeitei da culpa dos meus pés-de-prancha, chatos desde pequena, não se fabricou bota ortopédica que desse jeito de os curvar. Eu piso no chão com toda a robustez do meu corpo, inclusive, o coração pesando trezentas faltas.
Os meteoritos não raros, me atravessam da cabeça aos pés, com a sola-velcro da gravidade. Depois sentam e observam meus movimentos enquanto folheio um livro, na tentativa de não terminar tão cedo.
Leio um poema e outro sobre como posso parar o tempo. Nem sempre estou pronta e fugiria se soubesse. É preferível, então, que eu reconheça a possibilidade do mistério em curso, mas finjo desatenção, eu me encanto agitadamente com as artes daqueles olhos, uma sequência intitulada "os méis”, que me liam o dicionário interno: minha subjetividade fluía ali, nas ditas cores daqueles olhos que habitam em todos nós.
Às vezes, acontece d'eu acordar com uma ideia fixa pra um texto; às vezes, há um título, pode ser que este termine no lugar onde estou, como se fosse um de meus caminhos, como se a minha casa fosse a minha mente, sabe, "os méis" também estão neste parágrafo, ainda tímidos. Reconheci de imediato olhando para minhas mãos, em ambas, juntas, ali, porém, distanciadas pelo realismo dos meus neurônios lisos.
Meus pés foram traduzidos em alguns poemas que li para me resgatar do esquecimento conveniente, e, nunca, nunca mais devo me vestir de moça, nunca mais devo deixar me vestirem de moça. Tantos chás, cafés, tantos, os pés insuportavelmente rasos, arranhando-se às crateras desajustadas.
Por que deixei me machucar tanto até aqui?
Talvez nessa falta de resposta concreta, se misture a mensagem que não veio, a legenda não escrita, a mudez para o soltar das mãos, a porta aberta, a vontade de lá fora, chuva, pessoas na rua, andando, cada uma sendo um mundo enorme pra se explorar os detalhes. O outro universo que, ops, ainda estou em negativo, em processo de liberdade que insisto chamar de descongelamento. E eu, que nunca gostei de confessar, volto pra casa com um certo alívio e entendo a importância de se ouvir, pelo o menos, um pouco.
Durante a primeira guerra mundial,
Hemingway não foi aceito no exército americano por ter um problema de visão.
Mesmo não sendo propriamente soldado, o jovem aspirante a repórter não desistiu
de lutar por seus ideais e conseguiu embarcar para a Itália, onde contribuiu
para as forças aliadas como motorista de ambulâncias da Cruz Vermelha.
Com a bagagem cultural e emocional
trazida pela guerra, compôs uma de suas obras mais conhecidas, o citado Adeus
às Armas. O paralelismo entre a vida individual do Tenente Henry e a vida
coletiva, da Itália e da Europa em geral. Hemingway encara o amor atribulado de
Henry por Catherine em paralelo com o desenvolvimento da guerra.
A tragédia pessoal foi o corolário de uma
aventura individual tão intensa e dramática como a própria guerra. Tal como
Hemingway, a tragédia de um ser humano não é menor que a tragédia de uma nação,
de um continente ou da humanidade inteira porque cada homem encerra em si um
universo inteiro.
[...] Aos que trazem coragem a este
mundo, o mundo precisa quebrá-los para conseguir eliminá-los, e é o que faz.
O mundo os quebra, a todos; no entanto, muitos deles tornam-se mais fortes,
justamente no ponto onde foram quebrados. Mas aos que não se deixam quebrar, o
mundo os mata. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos –
indiferentemente. Se vocês não estão em nenhuma dessas categorias, o mundo
vai matar vocês, do mesmo modo. Apenas não terá pressa em fazer isso.
(HEMINGWAY, Ernest)
Passagens
pessimistas e ao mesmo tempo encorajadoras, inspiradas pelos horrores da
guerra, são indicativos de uma época em que o escopo da humanidade estava mais
voltado às suas próprias falhas, e muito menos às suas supostas virtudes.
“Quando me tiravam da cama para me
levarem à sala dos curativos via pela janela os túmulos recém abertos no
jardim. À porta que dava para o jardim, um soldado, sentado, fazia cruzes e
pintava-lhes os nomes, o posto e o regimento dos homens que eram enterrados no
jardim.” (HEMINGWAY, Ernest)
Embora
muita gente pense que a guerra é apenas um pano de fundo para o romance dos
dois. Acho que não. A medida em que o impacto da guerra fica mais próximo
deles, mais eles se tornam essenciais um ao outro.
Poucos autores deixaram transparecer a
sua própria vida, de forma tão clara, para a ficção. Essa situação, o autor nos faz pensar o quanto a
guerra impacta as emoções. Podemos entender o mundo antes, durante e depois da
Primeira Guerra Mundial a partir de todas essas etapas do romance deles.
Se a história da literatura fosse um
romance, Ernest Hemingway seria o personagem mais fascinante. Hemingway é
extremamente versátil e objetivo, é, sem dúvida, um dos mais brilhantes
representantes da literatura americana do século XX. Hemingway nos faz despertar para
o mundo, um mundo onde poucos querem se comprometer.
Sinto sempre uma responsabilidade muito
grande, quando escrevo sobre algum clássico da literatura, foi assim com o meu
querido e inesquecível, O Retrato de Dorian Gray. Falar sobre livros icônicos é
sempre difícil. Lembro-me que fiquei em estado de choque quando terminei o
livro, é clichê, eu sei, mas não há sentimento
melhor que expresse o que senti. Nunca mais fui a mesma. Escrevi sobre o livro,
mas não tive coragem de mostrar a ninguém, eram palavras de uma menina
deslumbrada com seu primeiro romance, dizeres piegas e inocentes demais. Mas
não poderia deixar de compartilhar outra impressão de leitura, desta vez de O
Morro dos Ventos Uivantes, mesmo correndo risco de usar clichês de apaixonada,
uma vez que este livro, a exemplo do Retrato, também me causou
arrebatamento.
Estamos na Inglaterra do século XIX, e a história
acompanha uma moça mal educada e de lindos olhos azuis, que se vê apaixonada
por um cigano adotado por seu pai, que não dá muitas explicações de onde
encontrou o menino. Heathcliff e Catarina Earnshaw, o casal sombrio mais famoso
e odiado da literatura, se apaixonam fulminantemente e marcam com sofrimento a
vida daqueles que o cercaram. Porém, por conta de orgulho, ambição e vingança,
não vivem seu amor e acabam levando-o para além da vida.
É uma sensação de estar no inferno o que o livro
nos faz sentir a cada página lida. Os personagens são intensos e munidos de uma
maldade natural. A todo momento você é provocado a raciocinar sobre os
personagens e suas motivações, e ainda tentar decifrá-los. Um livro
controverso, não existe um acordo sobre ser bom ou ruim. É algo como ame ou
odeie, e muitos odeiam. Eu amo, amo porque entendo a obsessão e a loucura do
amor de Heathcliff e Catherine, entendo-os como iguais, como loucos e
especialmente como apaixonados até o ponto em que se tornaram obcecados. Nelly,
a empregada de O Morro dos Ventos Uivantes, é quem está encarregada de nos
apresentar a história de todos, principalmente a do casal controverso, e entre
amor e ódio, muitos não têm certeza se apoiam Heathcliff ou se o odeiam por
toda sua falta de escrúpulos e qualquer demonstração de compaixão por quem quer
que seja.
Ambos vivem numa sociedade que os pressiona a
destruir seus verdadeiros “eus” – o que gera certa compaixão pelos os dois e
seus sofrimentos – A separação que os atinge, chega de uma forma trágica e com
consequências que perdurarão gerações. Catarina se entrega ao abismo de sua
depressão com consequências terríveis, o que reflete no caráter de Heathcliff,
tornando-o mais amargo e impiedoso.
É desafiador e prazeroso observar os personagens,
descobrir neles, a causa do que os corrompe e os torna todos detestáveis, até
mesmo, em alguns momentos, a própria Nelly, que é a mais amável da trama. Caty
e Heathcliff demonstram sempre nunca se sentirem pertencentes a lugar algum se
não estiverem juntos, os dois se identificam em suas personalidades livres e
rebeldes, marcando com dor e sofrimento quem ousa se impor ao amor dos dois.
Tão intenso, obscuro e inquietante para uma mulher
ter escrito, que é muito fácil compreender por que Emily teve que se tornar
Ellis Bell para conseguir publicá-lo. Ainda assim, seu livro foi rejeitado por
tratar do amor entre dois anti-heróis da forma forte e demoníaca como o fez,
por fugir da tradição vitoriana de romance e usar de violência e morbidez.
A frase final para o livro? Contradizer a ordem. E
o mesmo vale para Emily, que ao falecer em 1848 de forma tão irresponsável, não
chegou a ver seu livro assinado por seu verdadeiro nome – e que, irônica e
tragicamente, em O Morro dos Ventos Uivantes, a sociedade e seus valores
altamente conservadores triunfam no final.
Quando chega a hora de voar e a gente voa, mas não é só o endereço que muda, há algo dentro de mim que sofre uma transformação imediata e absurda quando resolvo ir embora. Uma parte de mim sempre fica e a outra parte, ganha milhares de novas incertezas. Acredite: ninguém sabe ao certo para aonde você está indo – e muito menos quem já se foi.
O frio na barriga continua o mesmo. A insegurança permeia a metáfora do meu discurso. Ainda temo não saber o que fazer da vida, no entanto, apego-me a mim. Porque nos dias mais assombrosos que precisei fugir, eu estava lá, em mim, comigo.
Ainda dá uma gastrite danada dessa dúvida entre chorar e sorrir, entre o ir e o ficar, entre abraçar e não largar. Ainda continuo me importando se irão julgar minhas escolhas como burras, erradas, impensadas – como se alguém, olha só, soubesse o que é melhor pra mim além de mim mesma.
Há quem duvide do ato de arrumar as malas. Se for ruim ou não, costumo achar que deixo um pedaço de mim em qualquer lugar que me despeço. Talvez seja o peso etílico-amelístico que pessoas intensas carregam nas malas, talvez seja modéstia imaginar que, no meio desses quilômetros todos, aparecem as dúvidas. Às vezes, sou contraditória. Vivo descobertas entusiasmadas e, no dia seguinte, acordo num tédio querendo voltar. Amo, mas penso que não é tudo aquilo que planejei. Ou penso que era tudo aquilo que imaginava, mas ainda não consigo acreditar. Porém, sigo na esperança de me encontrar.
Caminho e ainda sinto como se fosse aquela criança passeando descalça pelas ruas de minha casa. Não vejo o perigo. Arrisco-me nele. Agora, com os meus vinte e poucos, deparo-me com minhas asas mais abertas. Inclino-me na liberdade de encarar e tentar descobrir se é mesmo isso aí, como diria tio Grijó: “nos tornamos aquilo que achamos que iríamos ser.”
E, no meio disso tudo, descobrir que abandonar um pouco do lugar que era tão nosso e mudar pra um lugar distante é também uma maneira de se reinventar. É uma maneira de se livrar de tudo o que acham que deveríamos ser, de tudo o que acham devíamos fazer, de todas as escolhas que acham que deveríamos tomar.
Não sei. Talvez seja cedo pra falar ou talvez eu nunca saiba bem sobre tudo o que falo, mas nesses dias de saudades, medos gigantes e descobertas felizes, o que eu sei é que se permitir sermos o que somos é, no fundo, uma forma de se libertar.
Outro dia, recebi uma mensagem de uma leitora antiga, que acompanha o blog há um tempo. Entre uma frase e outra, ela me jogou um questionamento: você abandonou o blog? Minha primeira reação foi pensar que sim. Porque há tempos, estava me sentindo culpada por não postar mais nada por aqui, e até pior, por sequer acessar o blog para ver se o domínio ainda estava no ar.
Meu último post foi no dia 27 de janeiro. Meu último texto, de fato, foi no comecinho de janeiro também. Naquela época, estava animada com aquelas metas que você sempre acha que vai cumprir quando começa um novo ano.
Mas a vida foi ficando um pouquinho mais difícil do que estava imaginando nestes primeiros meses de dois mil e dezenove. Entre uma porrada e outra (no emocional, na vida acadêmica, na vida familiar etc), ainda me vi tendo que me recuperar de alguns socos, desses socos que a gente acha que nunca vai levar. Metaforicamente, a vida dá uns “soquinhos” na gente, né?
Andei sobrecarregada na faculdade e exausta emocionalmente. Abandonei o blog por um período porque eu simplesmente não tinha mais vontade de vir aqui. Não tinha vontade de escrever qualquer coisa, quando por dentro eu tava procurando um silêncio que não conseguia encontrar.
É difícil admitir que você falhou. Mas admitir que falhei em cumprir o que tava me prometendo é uma forma de entender que eu não tenho que abraçar o mundo de uma vez só. Tudo bem eu fazer as coisas em outros ritmos. Não tenho que ficar me comparando a ninguém, nem tentando fazer de tudo só porque vejo que outras pessoas conseguem fazer. De verdade, continuar assim só ia me deixar ainda pior.
Enquanto eu estava me recuperando de tudo isso, me segurando aos pouquinhos para continuar escrevendo, o Matheus Rocha, do blog Ininterrupto, também me fez pensar por cinco segundos o que eu poderia responder sobre o sumiço de minhas crônicas. Daí, me veio um trecho de uma música do Billy Joel que amo “slow down, you crazy child” (e que, inclusive, irei tatuar a qualquer momento, brincadeira). E foi aí que me toquei e pensei que podia desacelerar um pouco e tudo bem. Acontece. Irei voltar. Breve, breve!
Então, este post, na verdade, talvez seja um pedido de desculpas, mas também uma explicação que não consigo fazer tudo ao mesmo tempo e não vou me forçar a fazer. Vou voltando aqui aos poucos, no meu tempo, quando conseguir encaixar os posts do blog no meu dia a dia novamente.
E se quiserem saber por onde ando. Ando por aí em quase todas as redes sociais e adoro receber mensagens de vocês. Vamos conversar mais sobre o que querem ver por aqui, sobre os blogs de vocês, o que andam lendo e tudo mais!
Dei uns perdidos na vida, não queria conversar, tampouco escrever. Jogaram-me num mar de dúvidas entre uns falsos otimistas a quem me questionavam: o que quero da vida, quem eu quero ser, o que quero fazer daqui pra frente, por que nunca era boa o suficiente pra ninguém ou pra nada, e por que dói se deveria estar tudo bem?
Creio que estava esgotada do cansaço que era de não mais me pertencer. Talvez estivesse perdida demais. Tudo era em excesso. Era o acúmulo de culpas de uma realidade que fora construída para abrigar minhas lamentações. Eram escolhas que insistiam em dizer que estavam certas outrora, erradas. Das pessoas que deixei escapar, desses caminhos que foram tomados e outros desviados.
Amargurada. Tal amargura fazia-me fugir dos outros. Não pelos outros – mas por mim. Estava num confronto e não tinha ninguém do outro lado da parede que poderia me salvar. Não saberia ao certo se lutaria, entenderia, ou aguentaria os laços indissolúveis que criaram para mim enquanto ainda resistia.
Sumi. Dizem. Fui resolver uns problemas comigo, fui entender no que precisava melhorar. Precisei da ausência até entender que, pera aí... Não preciso provar nada a ninguém, o método que uso na vida é deixar sempre a essência falar.
Aí de mim, escutar e não poder responder. Aí de mim, viver num palco estabelecido por "perfeições domésticas" por trás de cortinas, vivendo um falso equilíbrio por puro ego. A dor da não-notícia. As feridas internas mudando o semblante e a serenidade que já não me pertencia mais.
Sumi. Dizem. Saí de mim por um tempo. Lembro-me da última parada, da mão gelada ao pé do ouvido e do último afago que me destruiu por dentro, embora eu sentisse um pouco de fadiga nos olhos, mas lá dentro, eles ainda continuam castanhos e sonhadores.
Sumi. Sofri uns baques, revivi umas dores e outras. Mas nunca estive tão a fundo de meu próprio silêncio e nunca foi tão libertador escutar o que sempre esteve aqui, dentro. Ninguém precisa passar por situações difíceis tão sozinha, sem querer que os outros percebam a fragilidade de dentro. Até porque, pouco tempo após isso, agarrei-me na mão de muita gente, todos suados e cansados mas seguramos firmes, mesmo com as câimbras, não soltei, não soltamos, não desfaleci, não falecemos. Nunca estive tão sozinha, mesmo que pensasse o contrário.
As cafeterias, os encontros mensais do clube literário, as visitas na casa nova, as viagens de escapes, as cadeiras aleatórias de cada espetáculo no teatro e os flashes de memórias de uma imagem que não sai da cabeça, "você não está sozinha". Eu estive lá, como diz Clarice "...numa plenitude sem fulminação...". Vivi num espetáculo, agora, assisto de longe.
Graças a suavidade dessas palavras, consegui fazer meus próprios curativos, cobri o que costumava chamar de sequelas. Hoje, amanhã e depois, quero continuar acordando todos os dias pra encarar a rotina milagrosa que é voltar para mim.
Pode ser que os dias sejam tão calmos como o olhar de minha professora de literatura. Pode ser que o vento bata forte até doer como naquele agosto de 2015 em que precisei atravessar a João Valério correndo e eu não estava preparada para a mudança de tempo. Pode ser que esteja quente e com ladeiras, como num carnaval no interior. Pode ser que as ladeiras existam pra ir até a padaria, como nos meus anos em Manaus ou como nos meus meses em Anorí.
Pode ser que as pessoas queiram demais lutar pela política que valoriza só o próprio umbigo. Pode ser que outras pessoas não concordem, mas percam por não saber onde recomeçar um diálogo. Pode ser que não seja justo. Pode ser que haja diálogo. Pode ser que haja gritaria, força, desamparo, desespero. Pode ser que no meio disso tudo, há um açaí ou um pudim de maracujá na mesa de minha mãe. Pode ser que a gente desista do que acabamos de decidir. Pode ser que a gente feche os olhos e deixe a intuição levar o vendaval.
Pode ser que a gente aprenda a parar de opinar na roupa dos outros, no gosto musical, na religião, na sexualidade e na emoção dos outros. Pode ser que a gente aceite e veja bem, aceitar não é querer fazer parte, nem querer ter por perto. É sobre respeitar.
Pode ser que a gente enxergue além sem poder fazer nada com isso. Pode ser que a gente queira deixar pra depois. Pode ser que chova demais como naqueles dias em que queria entrar no rio, mas olhava pro céu que não me permitia. Pode ser que a gente se permita mais. Pode ser que... Eu quero me permitir...