23 de setembro de 2020

Confissões no café da tarde


Suspeitei da culpa dos meus pés-de-prancha, chatos desde pequena, não se fabricou bota ortopédica que desse jeito de os curvar. Eu piso no chão com toda a robustez do meu corpo, inclusive, o coração pesando trezentas faltas. 

Os meteoritos não raros, me atravessam da cabeça aos pés, com a sola-velcro da gravidade. Depois sentam e observam meus movimentos enquanto folheio um livro, na tentativa de não terminar tão cedo. 

Leio um poema e outro sobre como posso parar o tempo. Nem sempre estou pronta e fugiria se soubesse. É preferível, então, que eu reconheça a possibilidade do mistério em curso, mas finjo desatenção, eu me encanto agitadamente com as artes daqueles olhos, uma sequência intitulada "os méis”, que me liam o dicionário interno: minha subjetividade fluía ali, nas ditas cores daqueles olhos que habitam em todos nós.

Às vezes, acontece d'eu acordar com uma ideia fixa pra um texto; às vezes, há um título, pode ser que este termine no lugar onde estou, como se fosse um de meus caminhos, como se a minha casa fosse a minha mente, sabe, "os méis" também estão neste parágrafo, ainda tímidos. Reconheci de imediato olhando para minhas mãos, em ambas, juntas, ali, porém, distanciadas pelo realismo dos meus neurônios lisos.

Meus pés foram traduzidos em alguns poemas que li para me resgatar do esquecimento conveniente, e, nunca, nunca mais devo me vestir de moça, nunca mais devo deixar me vestirem de moça. Tantos chás, cafés, tantos, os pés insuportavelmente rasos, arranhando-se às crateras desajustadas.

Por que deixei me machucar tanto até aqui?

Talvez nessa falta de resposta concreta, se misture a mensagem que não veio, a legenda não escrita, a mudez para o soltar das mãos, a porta aberta, a vontade de lá fora, chuva, pessoas na rua, andando, cada uma sendo um mundo enorme pra se explorar os detalhes. O outro universo que, ops, ainda estou em negativo, em processo de liberdade que insisto chamar de descongelamento. E eu, que nunca gostei de confessar, volto pra casa com um certo alívio e entendo a importância de se ouvir, pelo o menos, um pouco. 


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