23 de setembro de 2020

Confissões no café da tarde


Suspeitei da culpa dos meus pés-de-prancha, chatos desde pequena, não se fabricou bota ortopédica que desse jeito de os curvar. Eu piso no chão com toda a robustez do meu corpo, inclusive, o coração pesando trezentas faltas. 

Os meteoritos não raros, me atravessam da cabeça aos pés, com a sola-velcro da gravidade. Depois sentam e observam meus movimentos enquanto folheio um livro, na tentativa de não terminar tão cedo. 

Leio um poema e outro sobre como posso parar o tempo. Nem sempre estou pronta e fugiria se soubesse. É preferível, então, que eu reconheça a possibilidade do mistério em curso, mas finjo desatenção, eu me encanto agitadamente com as artes daqueles olhos, uma sequência intitulada "os méis”, que me liam o dicionário interno: minha subjetividade fluía ali, nas ditas cores daqueles olhos que habitam em todos nós.

Às vezes, acontece d'eu acordar com uma ideia fixa pra um texto; às vezes, há um título, pode ser que este termine no lugar onde estou, como se fosse um de meus caminhos, como se a minha casa fosse a minha mente, sabe, "os méis" também estão neste parágrafo, ainda tímidos. Reconheci de imediato olhando para minhas mãos, em ambas, juntas, ali, porém, distanciadas pelo realismo dos meus neurônios lisos.

Meus pés foram traduzidos em alguns poemas que li para me resgatar do esquecimento conveniente, e, nunca, nunca mais devo me vestir de moça, nunca mais devo deixar me vestirem de moça. Tantos chás, cafés, tantos, os pés insuportavelmente rasos, arranhando-se às crateras desajustadas.

Por que deixei me machucar tanto até aqui?

Talvez nessa falta de resposta concreta, se misture a mensagem que não veio, a legenda não escrita, a mudez para o soltar das mãos, a porta aberta, a vontade de lá fora, chuva, pessoas na rua, andando, cada uma sendo um mundo enorme pra se explorar os detalhes. O outro universo que, ops, ainda estou em negativo, em processo de liberdade que insisto chamar de descongelamento. E eu, que nunca gostei de confessar, volto pra casa com um certo alívio e entendo a importância de se ouvir, pelo o menos, um pouco. 


13 de janeiro de 2020

Lições do velho Hemingway em Adeus às Armas



Durante a primeira guerra mundial, Hemingway não foi aceito no exército americano por ter um problema de visão. Mesmo não sendo propriamente soldado, o jovem aspirante a repórter não desistiu de lutar por seus ideais e conseguiu embarcar para a Itália, onde contribuiu para as forças aliadas como motorista de ambulâncias da Cruz Vermelha.

Com a bagagem cultural e emocional trazida pela guerra, compôs uma de suas obras mais conhecidas, o citado Adeus às Armas. O paralelismo entre a vida individual do Tenente Henry e a vida coletiva, da Itália e da Europa em geral. Hemingway encara o amor atribulado de Henry por Catherine em paralelo com o desenvolvimento da guerra.

A tragédia pessoal foi o corolário de uma aventura individual tão intensa e dramática como a própria guerra. Tal como Hemingway, a tragédia de um ser humano não é menor que a tragédia de uma nação, de um continente ou da humanidade inteira porque cada homem encerra em si um universo inteiro. 

[...] Aos que trazem coragem a este mundo, o mundo precisa quebrá-los para conseguir eliminá-los, e é o que faz. O mundo os quebra, a todos; no entanto, muitos deles tornam-se mais fortes, justamente no ponto onde foram quebrados. Mas aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos – indiferentemente. Se vocês não estão em nenhuma dessas categorias, o mundo vai matar vocês, do mesmo modo. Apenas não terá pressa em fazer isso. (HEMINGWAY, Ernest)

Passagens pessimistas e ao mesmo tempo encorajadoras, inspiradas pelos horrores da guerra, são indicativos de uma época em que o escopo da humanidade estava mais voltado às suas próprias falhas, e muito menos às suas supostas virtudes. 

“Quando me tiravam da cama para me levarem à sala dos curativos via pela janela os túmulos recém abertos no jardim. À porta que dava para o jardim, um soldado, sentado, fazia cruzes e pintava-lhes os nomes, o posto e o regimento dos homens que eram enterrados no jardim.”  (HEMINGWAY, Ernest) 

Embora muita gente pense que a guerra é apenas um pano de fundo para o romance dos dois. Acho que não. A medida em que o impacto da guerra fica mais próximo deles, mais eles se tornam essenciais um ao outro.

Poucos autores deixaram transparecer a sua própria vida, de forma tão clara, para a ficção. Essa situação, o autor nos faz pensar o quanto a guerra impacta as emoções. Podemos entender o mundo antes, durante e depois da Primeira Guerra Mundial a partir de todas essas etapas do romance deles.

Se a história da literatura fosse um romance, Ernest Hemingway seria o personagem mais fascinante. Hemingway é extremamente versátil e objetivo, é, sem dúvida, um dos mais brilhantes representantes da literatura americana do século XX. Hemingway nos faz despertar para o mundo, um mundo onde poucos querem se comprometer.